sábado, 1 de dezembro de 2012

O Professor como Intelectual.


Ultimamente as reflexões acerca da educação, e mais especificamente do ensino de História, tem me ocorrido bastante, creio que em virtude da proximidade do final da graduação, do desenvolvimento do estágio e da participação no PIBID – Programa de Iniciação à Docência – vinculado à CAPES, do qual faço parte desde agosto deste ano. Diante disso, pretendo levantar hoje algumas questões problematizando o professor como um intelectual, a partir das análises do filósofo italiano Antonio Gramsci.
A obra de Gramsci aborda diversas temáticas que se alongam desde estudos sobre economia à estudos sobre folclore e gramática. No entanto, a obra do italiano encontra-se fragmentada. Gramsci, em virtude de suas práticas políticas no PCI – Partido Comunista Italiano – do qual fora um dos membros fundadores, foi encarcerado pelo regime fascista de Mussolini em meados anos 1920, permanecendo por cerca de uma década no cárcere. Na prisão Gramsci produziu uma série de reflexões que foram anotadas em cadernos que posteriormente foram reunidos para publicação. No Brasil, a obra gramsciana foi traduzida e editada pelo agora saudoso Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. Assim, com os seis volumes dos Cadernos do Cárcere podemos ter acesso à vasta e complexa obra de Antonio Gramsci.
Dentro desse imenso caldo de análises, retomarei um dos pontos fundamentais da obra de Gramsci: a questão dos intelectuais. Primeiro, analisarei de modo breve e esquemático as definições do filósofo sobre esse grupo social, articulando tais definições com seus escritos sobre a educação, para que, posteriormente, possamos problematizar o professor enquanto intelectual.
Para Gramsci todos os homens são intelectuais, ou ao menos possuem capacidade para tal, contudo, nem todos os homens assumem a função de intelectual dentro da sociedade, de modo que a condição de intelectual é produzida a partir de determinadas relações sociais. A partir dessa definição, Gramsci se distancia da imagem do intelectual enquanto um homem iluminado, portador de um alto saber erudito, passando a compreender o intelectual enquanto um funcionário da superestrutura, isto é, um funcionário responsável pela organização da cultura na sociedade. Nessa perspectiva, o intelectual assume uma função de direção na sociedade, ou em determinado grupo social, organizando-o e conferindo-lhe consciência.
À esse grupo heterogêneo dos intelectuais Gramsci estabelece duas divisões: os intelectuais orgânicos e tradicionais. Acerca dos intelectuais orgânicos Gramsci afirma:

Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político.


Sobre os tradicionais, continua:

Todo grupo social “essencial”, contudo, emergindo na história a partir da estrutura econômica anterior e como expressão do desenvolvimento dessa estrutura, encontrou – pelo menos na história que se desenrolou até nossos dias – categorias intelectuais preexistentes, as quais apareciam, aliás, como representantes de uma continuidade histórica que não foi interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais modificações das formas sociais e políticas.


A partir dos trechos citados acima é necessário perceber que os intelectuais se constituem em uma categoria histórica, surgindo a partir das necessidades de determinados grupos sociais. Esse enraizamento histórico é válido tanto para os intelectuais orgânicos quanto para os tradicionais. No entanto, intelectuais orgânicos e intelectuais tradicionais dizem respeito à origens históricas distintas. Como evidenciado nos trechos acima, para Gramsci os intelectuais orgânicos surgem a partir de grupos originários do terreno da produção que necessitam de sujeitos que lhe confiram consciência e homogeneidade nos campos social e político. Os tradicionais, ainda que também originados da estrutura produtiva, são originados por uma estrutura produtiva anterior, que foi destruída ou que perdeu espaço na sociedade, representando assim uma continuidade histórica.
Além de dividir os intelectuais em duas categorias, Gramsci também divide as esferas de atuação dos intelectuais na sociedade. Para o italiano, a sociedade encontra-se divida na sociedade civil[1], constituída à grosso modo pelos organismos privados, e pela sociedade política, que, também, de modo simplificado, diz respeito ao âmbito do Estado. No interior de ambas as esferas, a função dos intelectuais é contribuir para a formulação e consolidação da hegemonia, isto é, a produção do consenso entre a sociedade.
Portanto, a organização da cultura por parte dos intelectuais visa a disputa pela hegemonia na sociedade. Essa disputa ocorre em praticamente todos os espaços políticos e culturais, desde a imprensa até mesmo a escola. Assim, os grupos sociais, aos quais os intelectuais estão ligados organicamente, criam aparelhos privados de hegemonia, ou ainda buscam se apropriar dos aparelhos do Estado.
É a partir desse ponto que Gramsci começa a pensar a escola. Partindo de uma concepção bastante ampla da instituição escolar, Gramsci percebe que cada grupo social cria determinadas escolas que atendam tanto a sua demanda pela formação de intelectuais, quanto a sua demanda pela expansão do consenso na sociedade. Nesse sentido, cada escola é orientada a partir de determinadas perspectivas políticas e culturais que nortearão à formação de seus estudantes.
Diante disso, podemos trazer a discussão de Gramsci para pensar a escola brasileira, sobretudo a pública, e sua relação com seus intelectuais, tanto professores quanto diretores e coordenadores. Pensar a escola enquanto um aparelho de hegemonia implica em dizer que determinado grupo da sociedade civil, ao assumir o Estado, ou seja, a sociedade política, busca implementar seu próprio projeto de hegemonia a partir dos vários espaços disponíveis para tal. Nesse sentido, o Estado brasileiro estabelece uma série de normas e parâmetros para a educação, que se encontram encarnados em documentos como a LDB – Lei de Diretrizes e Bases – e o PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais.
Tais documentos são um exemplo claro da ação organizativa da cultura promovida por parte dos intelectuais e de sua atuação para a geração do consenso. Assim, por mais que essas normas e parâmetros tragam pontos interessantes para a aplicação em sala de aula, estas não devem se consolidar em uma manual da prática docente a ser seguido cegamente.
Nesse sentido, o professor deve se colocar não como um reprodutor da cultura, mas como um organizador da cultura, que percebe as implicações ideológicas contidas em tais diretrizes e na própria organização do espaço escolar. A partir dessa atitude crítica, o professor poderá assumir sua função diretiva, de formação da consciência de seus discentes a partir de seu próprio contato com a escola e com os discentes, tendo em vista um outro projeto educacional para o Brasil, ou até mesmo contribuindo para a construção de uma outra hegemonia.
Assim, assumindo a sua função de intelectual o docente em seu espaço de trabalho na sala de aula, pode operar uma espécie de subversão da hegemonia, ou de uma contra-hegemonia, opondo-se à lógica do sucateamento da educação pública, contribuindo na formação de um novo tipo de sujeito histórico que pode se inserir na intensa e longa guerra de posições que é a luta pela hegemonia.
É óbvio que esse não é um processo simples. Não desejo contribuir para um falseamento da duríssima realidade docente no Brasil. Pelo contrário, o intuito dessas reflexões é o apontamento da existência de um projeto hegemônico, marcado pela ofensiva neoliberal que se expande pelos diversos espaços de difusão cultural, e também apontar a reflexão de alguns espaços de resistência contra-hegemônica que podem vir a existir a partir da retomada da função intelectual do docente.


[1] É importante lembrar aqui que todas essas categorias gramscianas devem ser compreendidas a partir de uma relação dialética.

Nenhum comentário:

Postar um comentário