Ultimamente
as reflexões acerca da educação, e mais especificamente do ensino de História,
tem me ocorrido bastante, creio que em virtude da proximidade do final da
graduação, do desenvolvimento do estágio e da participação no PIBID – Programa de
Iniciação à Docência – vinculado à CAPES, do qual faço parte desde agosto deste
ano. Diante disso, pretendo levantar hoje algumas questões problematizando o
professor como um intelectual, a partir das análises do filósofo italiano
Antonio Gramsci.
A
obra de Gramsci aborda diversas temáticas que se alongam desde estudos sobre
economia à estudos sobre folclore e gramática. No entanto, a obra do italiano
encontra-se fragmentada. Gramsci, em virtude de suas práticas políticas no PCI –
Partido Comunista Italiano – do qual fora um dos membros fundadores, foi
encarcerado pelo regime fascista de Mussolini em meados anos 1920, permanecendo
por cerca de uma década no cárcere. Na prisão Gramsci produziu uma série de
reflexões que foram anotadas em cadernos que posteriormente foram reunidos para
publicação. No Brasil, a obra gramsciana foi traduzida e editada pelo agora
saudoso Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. Assim, com os seis
volumes dos Cadernos do Cárcere
podemos ter acesso à vasta e complexa obra de Antonio Gramsci.
Dentro
desse imenso caldo de análises, retomarei um dos pontos fundamentais da obra de
Gramsci: a questão dos intelectuais. Primeiro, analisarei de modo breve e
esquemático as definições do filósofo sobre esse grupo social, articulando tais
definições com seus escritos sobre a educação, para que, posteriormente,
possamos problematizar o professor enquanto intelectual.
Para
Gramsci todos os homens são intelectuais, ou ao menos possuem capacidade para
tal, contudo, nem todos os homens assumem a função de intelectual dentro da
sociedade, de modo que a condição de intelectual é produzida a partir de
determinadas relações sociais. A partir dessa definição, Gramsci se distancia
da imagem do intelectual enquanto um homem iluminado, portador de um alto saber
erudito, passando a compreender o intelectual enquanto um funcionário da
superestrutura, isto é, um funcionário responsável pela organização da cultura
na sociedade. Nessa perspectiva, o intelectual assume uma função de direção na
sociedade, ou em determinado grupo social, organizando-o e conferindo-lhe
consciência.
À
esse grupo heterogêneo dos intelectuais Gramsci estabelece duas divisões: os
intelectuais orgânicos e tradicionais. Acerca dos intelectuais orgânicos
Gramsci afirma:
Todo
grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo
da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais
camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria
função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político.
Sobre
os tradicionais, continua:
Todo
grupo social “essencial”, contudo, emergindo na história a partir da estrutura
econômica anterior e como expressão do desenvolvimento dessa estrutura,
encontrou – pelo menos na história que se desenrolou até nossos dias –
categorias intelectuais preexistentes, as quais apareciam, aliás, como
representantes de uma continuidade histórica que não foi interrompida nem mesmo
pelas mais complicadas e radicais modificações das formas sociais e políticas.
A
partir dos trechos citados acima é necessário perceber que os intelectuais se
constituem em uma categoria histórica, surgindo a partir das necessidades de
determinados grupos sociais. Esse enraizamento histórico é válido tanto para os
intelectuais orgânicos quanto para os tradicionais. No entanto, intelectuais
orgânicos e intelectuais tradicionais dizem respeito à origens históricas
distintas. Como evidenciado nos trechos acima, para Gramsci os intelectuais
orgânicos surgem a partir de grupos originários do terreno da produção que
necessitam de sujeitos que lhe confiram consciência e homogeneidade nos campos
social e político. Os tradicionais, ainda que também originados da estrutura
produtiva, são originados por uma estrutura produtiva anterior, que foi
destruída ou que perdeu espaço na sociedade, representando assim uma
continuidade histórica.
Além
de dividir os intelectuais em duas categorias, Gramsci também divide as esferas
de atuação dos intelectuais na sociedade. Para o italiano, a sociedade
encontra-se divida na sociedade civil[1],
constituída à grosso modo pelos organismos privados, e pela sociedade política,
que, também, de modo simplificado, diz respeito ao âmbito do Estado. No
interior de ambas as esferas, a função dos intelectuais é contribuir para a
formulação e consolidação da hegemonia, isto é, a produção do consenso entre a
sociedade.
Portanto,
a organização da cultura por parte dos intelectuais visa a disputa pela
hegemonia na sociedade. Essa disputa ocorre em praticamente todos os espaços
políticos e culturais, desde a imprensa até mesmo a escola. Assim, os grupos
sociais, aos quais os intelectuais estão ligados organicamente, criam aparelhos
privados de hegemonia, ou ainda buscam se apropriar dos aparelhos do Estado.
É
a partir desse ponto que Gramsci começa a pensar a escola. Partindo de uma
concepção bastante ampla da instituição escolar, Gramsci percebe que cada grupo
social cria determinadas escolas que atendam tanto a sua demanda pela formação
de intelectuais, quanto a sua demanda pela expansão do consenso na sociedade.
Nesse sentido, cada escola é orientada a partir de determinadas perspectivas
políticas e culturais que nortearão à formação de seus estudantes.
Diante
disso, podemos trazer a discussão de Gramsci para pensar a escola brasileira,
sobretudo a pública, e sua relação com seus intelectuais, tanto professores quanto
diretores e coordenadores. Pensar a escola enquanto um aparelho de hegemonia
implica em dizer que determinado grupo da sociedade civil, ao assumir o Estado,
ou seja, a sociedade política, busca implementar seu próprio projeto de
hegemonia a partir dos vários espaços disponíveis para tal. Nesse sentido, o
Estado brasileiro estabelece uma série de normas e parâmetros para a educação,
que se encontram encarnados em documentos como a LDB – Lei de Diretrizes e
Bases – e o PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais.
Tais
documentos são um exemplo claro da ação organizativa da cultura promovida por
parte dos intelectuais e de sua atuação para a geração do consenso. Assim, por
mais que essas normas e parâmetros tragam pontos interessantes para a aplicação
em sala de aula, estas não devem se consolidar em uma manual da prática docente
a ser seguido cegamente.
Nesse
sentido, o professor deve se colocar não como um reprodutor da cultura, mas
como um organizador da cultura, que percebe as implicações ideológicas contidas
em tais diretrizes e na própria organização do espaço escolar. A partir dessa
atitude crítica, o professor poderá assumir sua função diretiva, de formação da
consciência de seus discentes a partir de seu próprio contato com a escola e
com os discentes, tendo em vista um outro projeto educacional para o Brasil, ou
até mesmo contribuindo para a construção de uma outra hegemonia.
Assim,
assumindo a sua função de intelectual o docente em seu espaço de trabalho na
sala de aula, pode operar uma espécie de subversão da hegemonia, ou de uma
contra-hegemonia, opondo-se à lógica do sucateamento da educação pública,
contribuindo na formação de um novo tipo de sujeito histórico que pode se
inserir na intensa e longa guerra de posições que é a luta pela hegemonia.
É
óbvio que esse não é um processo simples. Não desejo contribuir para um
falseamento da duríssima realidade docente no Brasil. Pelo contrário, o intuito
dessas reflexões é o apontamento da existência de um projeto hegemônico,
marcado pela ofensiva neoliberal que se expande pelos diversos espaços de
difusão cultural, e também apontar a reflexão de alguns espaços de resistência
contra-hegemônica que podem vir a existir a partir da retomada da função
intelectual do docente.
[1] É
importante lembrar aqui que todas essas categorias gramscianas devem ser
compreendidas a partir de uma relação dialética.
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