A postagem de hoje procura contribuir um pouco com algumas reflexões sobre o que está se passando no Brasil com as mais diversas manifestações que vem ocorrendo nas cidades do país. É um texto produzido no calor do momento. É uma forma de tentar pensar algumas questões publicamente. Não há uma reflexão sistematizada, mas é a minha contribuição do momento. Como sempre, não tenho a verdade de nada.
É
impossível não pensar e não falar em outra coisa além das manifestações e
protestos que vem ocorrendo em diversas cidades brasileiras nas últimas semanas.
Há, tanto nos espaços virtuais quanto na sociedade, um sentimento de euforia
pelo momento que passa o país, o que se torna evidente nas milhares de hashtags
espalhadas pelo facebook (#ogiganteacordou, #vamoprarua, dentre outras tantas).
No entanto, a euforia precisa ceder seus momentos para a razão. É necessário
perceber as virtudes e apontar os limites desse momento.
Sem
dúvida, é maravilhoso ver o número de manifestações e de manifestantes em nosso
país, que, historicamente, sempre procurou criminalizar[1]
todos os tipos de manifestações e movimentos sociais, encarando-os como atos de
vandalismo e baderna. O número de manifestantes impressiona, gera otimismo e a
vontade irrefreável de participação nesse momento histórico do Brasil. Esse
contágio se mostra válido na medida em que diversas cidades pacatas do interior
do país estão se reunindo e saindo as ruas para protestarem.
Todavia,
é necessário refletir e apontar algumas questões relevantes em torno das
manifestações e, sobretudo dos manifestantes. Existes algumas questões
bastantes óbvias que não necessitam de uma discussão mais detida, como o
vandalismo de alguns manifestantes. Não é preciso dizer quão estúpidos são
esses atos. Mas, felizmente, estes são a minoria dos que se manifestam e,
ainda, os manifestantes que não aderiram ao vandalismo procuram impedir atos de
depredação do patrimônio público, o que reforça o caráter pacífico dos
protestos, o que precisa ser, de fato, elogiado.
O
que gostaria, portanto, de analisar é o conteúdo político que aparece nessas
manifestações. Nota-se uma rejeição aos partidos políticos e mesmo à política
institucional brasileira, que, na visão dos manifestantes, não representa os
interesses do povo brasileiro. Esses fatos se evidenciam com nitidez nas
discussões existentes nas redes sociais e nas próprias manifestações, quando as
bandeiras dos partidos políticos, sejam quais forem, são terminantemente
proibidas.
Tal
rejeição é totalmente compreensível no Brasil. Aparentemente, não há distinções
entre partidos políticos. Os políticos brasileiros representam mais seus
próprios interesses que os interesses do povo que os elegeu, o que é também
inegável. No entanto, essa rejeição aos partidos e a política institucional
pode se mostrar perigosa e prejudicial ao andamento dos movimentos e das
manifestações.
O
partido político, como já detectara Antonio Gramsci no início do século XX, é a
instituição responsável por estabelecer a mediação entre a sociedade civil e a
sociedade política. Assim, o partido se comporta como um intelectual coletivo,
sendo responsável por absorver, criar e reproduzir as vontades coletivas
surgidas na sociedade civil. Nesse sentido, para Gramsci, o partido político, a
partir da vontade coletiva, entra na disputa pela hegemonia na sociedade,
almejando tornar-se governante dentro da sociedade. Na análise gramsciana, o
partido não aparece como uma instituição contrária aos interesses da sociedade
como um todo; pelo contrário, o partido político brota dos interesses
históricos da sociedade civil.
No
Brasil, portanto, é necessário perceber, e creio que os manifestantes também o
perceberam, que os partidos políticos representam determinados setores da
sociedade civil que possuem interesses distintos aos interesses da população em
geral. No entanto, na configuração política atual brasileira, as instituições
parecem ser ainda necessárias à população brasileira, de modo que rejeitá-las
integralmente pode fazer com que as manifestações esbarrem em dificuldades insolúveis.
Isso
ocorre porque é necessário que os interesses que brotam da sociedade civil se
manifestem dentro da sociedade política. Deste modo, é preciso que novos
intelectuais coletivos surgem no sentido de organizar esses interesses da
sociedade civil, para que estes interesses se universalizem dentro da sociedade
brasileira. Esse intelectual coletivo pode surgir por baixo, do interior desses
movimentos, de modo que essas manifestações podem gerar atores políticos que
atuem no interior das instituições brasileiras, transformando-as por dentro.
Com isso, haveria a construção de uma instituição representativa dos interesses
dessa sociedade.
Essa
rejeição dos partidos e da política institucional explica-se historicamente.
Tais manifestações se inserem, globalmente, em um momento que se prolonga desde
o início dos anos 1990, que nomeia-se pela crise das ideologias. Findo o embate
entre socialismo e capitalismo e finda a URSS, a distinção entre esquerda e
direita parece ter se esgotado e as ideologias parecem ter se acabado. Em uma
perspectiva nacional, esses movimentos partem de uma geração, a geração que
nasceu no final dos anos 1980 e início dos 1990, que transformou a política e
os políticos em sinônimos de bandidagem e busca de interesses próprios. Isso ocorre
por razões óbvias. Nossa transição democrática não se resolveu de modo
satisfatório, ainda que o projeto mais conservador dos militares não tenha sido
efetivado de modo integral. As Diretas Já! reúnem milhares de pessoas em
diversas manifestações e são derrotadas, de modo que a primeira eleição
pós-ditadura militar ocorre de modo indireto. Para agravar a situação, o
primeiro presidente que elegemos é Fernando Collor. Para além disso, assistimos
casos e mais casos de corrupção no Brasil, como o recente Mensalão.
Diante
disso, é necessário refletir acerca dos caminhos que tais protestos desejam
tomar. É ponto consensual que os partidos e instituições que temos no Brasil
não nos representam. No entanto, me parece não ser possível haver progressos
mais sólidos dessas manifestações sem uma nova proposta de representação
política no Brasil. A reformulação dos partidos, obviamente, não é o caminho
exclusivo para uma reforma política no Brasil, mas parece ser um dos elementos
fundamentais, dada a concepção de partido político enunciada acima.
Nesse
sentido, creio que um caminho para as manifestações no Brasil seja o do
aprendizado. Creio que tais movimentos devam promover o aprendizado da
revalorização da política no Brasil. Diante das revoltas, os manifestantes
devem desfazer a concepção da política como sinônimo da busca dos interesses
pessoais, passando a revalorizá-la como uma esfera de mediação de interesses
coletivos necessária ao progresso e consolidação da democracia no Brasil.
Contudo,
alcançar o caminho da coletividade parece ser complicado. Apesar de milhares de
pessoas estarem protestando ao mesmo tempo em diversos lugares, não há coesão
entre os manifestantes. Diversas ideologias e propostas coexistem dentro do
movimento. Protesta-se contra uma multiplicidade de pontos, tanto à esquerda
quanto à direita. Parece-me que isso é um sintoma claro da historicidade do
tempo em que vivemos. As propostas de coletividade decrescem em torno de
propostas individualistas, gerando, assim, uma sociedade atomizada e líquida,
no sentido dado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman.
Isso
também demonstra que as propostas globais de transformação da sociedade, ou
macroprojetos alternativos, estão em descrédito. A leitura do filósofo Slavoj
Zizek sobre os movimentos Occupy de 2011 parece também adequar-se ao que
acontece no Brasil de hoje. Para o filósofo, tais movimentos se colocam na
oposição de determinada ordem estabelecida, no entanto, não conseguiram
formular ainda um projeto alternativo para tal ordem. Assim, no Brasil, estamos
fartos da ineficiência do Estado brasileiro em oferecer determinados serviços;
todavia, não sabemos que colocar no lugar dessa ordem estatal.
Portanto,
creio que seja necessário que tais movimentos busquem uma reavaliação da idéia
de política no Brasil. Além disso, é também necessário utilizar esse momento de
oposição para gestar um novo projeto político coletivo que possa organizar e
unificar essa oposição no sentido de transformar a ordem política brasileira,
transformando, de fato a sociedade. Caso isso não seja feito, é possível que as
manifestações prossigam e terminem em si mesmas.
[1] É
importante notar que a mídia brasileira mostra uma mudança de opinião em
relação aos protestos no momento em que o autoritarismo policial atinge os
manifestantes e inclusive os jornalistas. Fato que evidencia esse mudança de
opinião é já clássico programa do Datena, que o apresentador, ao ver as
opiniões em uma enquete do programa, transforma o enfoque dado as
manifestações.
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