Refletindo acerca dos tempos modernos, podemos notar que a preocupação com a literatura nos estudos históricos ainda se faz presente em diversas correntes e pensamentos. Dentre os autores do século XIX podemos elencar Wilhem Dilthey, no qual há uma linha tênue entre o que separa a história da arte ou mesmo da literatura; Jacob Buckhardt, refletindo acerca da poesia neolatina no Renascimento Italiano e Marx e Engels, mesmo que em apontamentos diversos e esparsos sobre a Idade Média, literatura russa, dentre outras.
Todavia, uma preocupação mais sistematizada e organizada da literatura enquanto fonte histórica surge somente no século XX, já na primeira geração da Escola dos Annales, de Marc Bloch e Lucien Febvre. Como cunhado por Bloch, em A Apologia da História, a história é ciência dos homens no tempo, de modo que quaisquer vestígios legados pelos homens ao presente são fontes em potencial para a compreensão da história. Assim, não apenas aqueles documentos oficiais adentram o rol de possibilidades de fontes, mas todos os textos, como aponta Febvre:
Os textos, sem dúvida, mas todos os textos. E não só os documentos de arquivos em cujo favor se cria um privilégio [...]. Mas também um poema, um quadro, um drama: documentos para nós, testemunhos de uma história viva e humana, saturados de pensamentos e de ação em potência. (FEBVRE apud FERREIRA, 2009, p. 64)
Portanto, cônscios das possibilidades do uso da literatura enquanto testemunho humano saturado de pensamentos e ações, devemos refletir sobre como utilizar a fonte literária, visto que cada tipo de fonte possui sua linguagem intrínseca e necessita de um determinado trato. Para tanto, nos utilizaremos das reflexões de Erza Pound e
de Antonio Cândido.
De acordo com Ezra Pound (2006) literatura é linguagem carregada de significados, de modo que o poema é uma estrutura condensada na qual o autor se utiliza de elementos formais para exprimir uma mensagem. Com Antonio Cândido, em suas obras Literatura e Sociedade e Estudo Analítico do Poema, podemos perceber que tais significados contidos no texto literário vão além daqueles contidos apenas no poema, havendo uma estrutura interna e externa do texto.
Para Cândido, a estrutura interna é composta por aquilo que está efetivamente dentro do texto, as palavras, rimas, métrica e outros recursos formais. A estrutura externa é aquilo que se encontra fora do texto, onde se encaixam os aspectos históricos, sociais e filológicos referentes ao texto. Deste modo, podemos notar com Cândido que os textos literários são históricos e só são escritos mediante às possibilidades de seu tempo histórico. Assim, o estudo da literatura pelo historiador deve se pautar na análise dialética destas duas estruturas, uma vez que a própria estética também é histórica.
Deste modo, o discurso literário possui profundas raízes históricas, de modo que a partir deste é possível que obtenhamos visões acerca da sociedade de determinadas classes sociais, determinados valores políticos, religiosos, etc. que são expressos esteticamente por meio da literatura. A palavra é um arena, como expressa Mikhail Bakhtin, onde se confrontam valores sociais contraditórios, onde a própria luta de classes pode ser expressada. Assim, a linguagem e as palavras denotam o conhecimento de mundo do próprio autor.
Maria Aparecida Baccega nos dá um exemplo bastante interessante e didático acerca disto, no qual a simples utilização de uma palavra em detrimento de outra altera todo o significado e valores de quem a utiliza. Chegar ou descobrir a América? Questão aparentemente banal que esconde atrás de si discursos e poderes. De acordo com a autora, o uso da expressão chegar mostra que o autor compreende que há populações autóctones que viviam no continente antes da chegada do europeu; no segundo caso o autor do discurso entende que os índios são como uma tábula rasa, sem cultura ou mesmo história.
A partir do que fora exposto pudemos perceber nitidamente que o discurso literário é polifônico e polissêmico, sincrônico e diacrônico, de modo que as possibilidades de trabalho com esta fonte são quase que infinitas, o que justifica Antônio Celso Ferreira nomear a literatura por fonte fecunda. Obviamente os recortes e bom senso do pesquisador devem operar para a prática de uma pesquisa rica e ao mesmo tempo exeqüível.
Além dos recortes é necessário que o historiador conheça sua fonte de modo aprofundado, o que significa que este deverá realizar alguns estudos literários. A abertura da história às múltiplas linguagens inevitavelmente obriga o historiador à busca de uma nova erudição, como aponta Elias Thomé Saliba. No entanto, por vezes, essa busca pela nova erudição tem dissipado a fronteira entre a história e a literatura e entre a ciência e a ficção.
Antonio Celso Ferreira aponta para a existência de um crítica pós-modernista, que também encontra eco na própria historiografia, que defende que a história é fundamentalmente uma narrativa como a literária. Um dos maiores expoentes dessa corrente é Hayden White, que propõe que as narrativas históricas são “ficções verbais, cujos conteúdos são tão inventados como descobertos, e cujas formas têm mais em comum com suas contrapartidas na literatura do que na ciência.” (WHITE apud FERREIRA, 2009, p. 77)
Retomar o pensamento de Marc Bloch nesses momentos é realmente eficaz e oportuno. Para Bloch, o historiador deve ser, de fato, interdisciplinar, dialogando com as mais diversas áreas do conhecimento e se utilizando das mais diversas fontes possíveis, mantendo sempre a sua identidade de historiador: o cientista dos homens no tempo. Antônio Celso Ferreira também faz apontamentos nesse sentido:
Essa lembrança é essencial para o pesquisador que trabalha com textos literários, sobretudo os de ficção histórica. É certo que o caráter polifônico destes, pelo diálogo que estabelecem entre as diferentes vozes das personagens, além da voz do narrador, possibilita a investigação da complexidade do imaginário histórico, da diversidade das ideologias e dos modos como os diferentes indivíduos ou grupos sociais se inserem dentro dele em determinadas épocas. Contudo, tais representações constituem sempre um universo ficcional, por mais verossímil que seja. O papel do historiador é confrontá-las com outras fontes, ou seja, outros registros que permitam a contextualização da obra para assim se aproximar dos múltiplos significados da realidade histórica. (p. 77)
Portanto, o trabalho com a literatura pelo historiador é um trabalho que exige a crítica da fonte e o estabelecimento de uma metodologia para este fim, de modo que o discurso do historiador se torna um discurso científico, em uma concepção de ciência que não almeja uma objetividade ou uma verdade absoluta, mas que buscar a apreensão de alguns aspectos da realidade histórico, mesmo que de modo aproximado ou representativo.
Sabendo-se disso e tomando todos os cuidados necessários à pesquisa em história, a literatura se torna um campo vasto, prazeroso e fecundo ao historiador que se dedica a esta, podendo abordá-la tanto pelo viés estético ou de seu conteúdo; articulando ambos; refletindo acerca da historicidade de um movimento literário em específico; ou mesmo pensar as proposições de um autor ou o conflito entre dois ou mais autores.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. Arte Poética. Tradução: NASSETI, Pietro. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006.
BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e Discurso: Literatura e História. São Paulo: Editora Ática, 2000.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução: LAHUD, Michel; VIEIRA, Yara Fratechi. São Paulo: Editora Hucitec, 12ª Edição, 2006.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Tradução: TELLES, André. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2001.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: Estudos de teoria e história literária. RJ: Editora Ouro sobre o Azul, 9ª Edição, Rio de Janeiro, 2006.
FERREIRA, Antonio Celso. A Fonte Fecunda. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.); DE LUCA, Tania Regina (org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Editora Contexto, 2009.
POUND, Ezra. ABC da Literatura. Tradução: CAMPOS, Augusto de; PAES, José Paulo. São Paulo: Editora Cultrix, 11ª Edição, 2006.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: Tensão social e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2ª Edição, 2009.
Também publicado no blog dominiosdeclio.blogspot.com
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